Os Olhos da Multidão.
por Marlon Marques.
Em princípio ninguém acreditou no que viu. Mas quem viu, realmente viu, mesmo sem acreditar. A Holanda fazia 2X1, uma virada improvável, diferente das viradas de nossas vidas. Aquele jogo parecia fácil demais. Parecia até uma reprise de Brasil x Chile, mas como felicidade de pobre, durou pouco. Os milhares que estavam pintados aos poucos viram se dissipar de seus rostos a maquiagem convicta. As lágrimas borram os sonhos de milhões de brasileiros tão certos da vitória. A imprensa que devia primar pela isenção, deixou falar mais alto o coração e nos jornais leram-se chacotas e desaforos contras os holandeses. O país estava todo lá, alguns lá, e muitos aqui. Não se ouvia barulho vindo das ruas, apenas umas poucas crianças com cornetas festivas nas mãos brincavam sem ver a tevê. Os 190 milhões de pares de olhos tornaram-se um imenso olho, um grande irmão atento a cada movimento dos atletas. Ninguém desgrudou da poltrona do sofá, ninguém piscou, ninguém acreditou. O primeiro tempo passou e tudo parecia um sonho. O Brasil havia marcado dois, um não valerá, o outro balançou as redes computando no placar a parcial vitória com sabor de goleada, pois o escrete canarinho abusou dos gols perdidos e dos toques rebuscados. A multidão soltara enfim o grito entalado na garganta, pois não bastava vencer, era vencer ou morrer frente ao nosso mais difícil adversário até então. Os olhos de Dunga miravam o campo e secavam cada lance holandês. O grande olho da multidão inchou-se e tornou-se gordo, transmitindo uma quizumba para o campo que apenas refletia nos holandeses. Tudo dava certo para nós, enquanto que para eles tudo dava errado. O gol saiu cedo, o que enervou o time laranja, que errava passes e mal conseguia chegar ao bico da área brasileira. O Brasil era agudo nos contra-ataques, Kaká parecia querer se redimir nesse jogo, até Felipe Melo queria calar seus críticos, tanto que deu um belo passe de mais de quarenta jardas, encontrou Robinho livre após penetração rápida pelo meio da zaga adversária e marcou o gol brasileiro. Nesse momento o país explodiu numa festa sem fim. O sorriso estampava o rosto do povo. Sim do povo, essa entidade metafísica representada pela seleção, com mais de 100 milhões de corações pulsando. As emissoras de televisão deram fleches das várias capitais, o que se viu foram chuvas de papéis picados, sinfonias de vuvuzelas, abraços febris e certeza. Nesse momento o brasileiro era o mais confiante do mundo, era um povo soberbo, olhando de cima, com olhos de pátria superior, pois no simulacro do futebol nos igualamos a qualquer PIB americano. Os 45 iniciais haviam passado, as mesmas crianças intuitivamente continuavam brincando sem ver a tevê, mas exibiam um sorriso bonito, que só os que confiam possuem. E elas confiavam, pois vestiam as roupas da pátria de chuteiras, tingiam suas peles de amarelo, eram milhares e milhares vestidos de sol. Quando o juiz apitou o início do segundo tempo, via-se nos olhos da multidão o brilho do hexa. O amarelo do sol fez brilhar o verde da esperança nos olhos desse povo mestiço, a confiança mostrava sua cara na face cansada de um país complexado. Estava nesse destino vencer, e quem sabe o caminho dessa afirmação, dessa afirmação como time, como nação começava ali, naquele jogo. Tudo parecia perfeito até os 8 minutos da segunda etapa, Sneijder cruza e Felipe Melo desvia para o fundo do próprio gol. A multidão parece não acreditar no empate. Como? Os milhares no vale do Anhangabaú e na Arena Fan Fest em Copacabana observaram atônitos o gol holandês, o gol da apreensão. O Brasil sente o golpe, e mais, a Holanda percebe que o Brasil sente o golpe e se aproveita disso. Como um barquinho em águas calmas, a Holanda passa a tocar a bola, gastar o tempo e dominar o jogo. O domínio era tanto que o Brasil mal conseguiu ficar com a bola, estava já tão nervoso que parecia estar perdendo a partida. Essa sensação de derrota do time refletiu na torcida. Muitas caras de espanto olhavam para o campo quem não querendo ver aquilo. Os vizinhos dos prédios aos lados silenciaram, dava para sentir a apreensão em cada rosto, o tremer de cada voz e o barulho das unhas sendo ruídas a cada estocada do time adversário. Foi então que o craque do time holandês resolveu jogar, Robben que até então estava discreto, passou a desestabilizar o já abalado Brasil. Foi dele o passe para Sneijder cruzar e marcar o primeiro, ele também provou o cartão de Michel Bastos obrigando Dunga a mexer no time. O escanteio que resultou na virada da Holanda também foi batido por Robben, Kuyt desvia para trás e Sneijder novamente marca. Nesse momento os milhões de olhos se viraram uns para os outros e se perguntaram se aquilo era mesmo verdade. Ninguém ali, e aqui acreditou nos gols, ninguém também acreditou na inexistência do time brasileiro no segundo tempo. Os olhos que foram lá e estavam cá para ver o time, só o viu no primeiro tempo, pois no segundo sumiu, de súbito deixou de existir a vista daquela nação aflita. O que fazer? Nem a multidão sabia, nem os jogadores, o técnico então era o que menos sabia. Naquele momento passou muitas coisas pela cabeça de todos, o viralatismo, 2006, o discurso patriótico, os jornalistas, as cornetas, a preparação, os craques que ficaram no país e as não-opções no banco de reservas. Muitas interrogações tomaram as cabeças, do céu ao invés de confetes, caiam os tais pontos, caiam muitas dúvidas, caiam desesperança e dor, choro e tristezas. Sneijder e Robben juntos eram os Zidane e Henry da vez, nossos algozes quatro anos antes. O povo que foi a desforra no primeiro tempo viu o céu transformar-se rapidamente em inferno, onde as chamas eram laranjas e o diabo amassava o pão com tamancos. De um lado a pura alegria européia, do outro um samba de uma nota só, era essa a música melancólica que se ouvia a partir do campo. Os minutos se passavam, os jogadores brasileiros estavam ali presentes apenas materialmente, pois seus espíritos já estavam queimando no inferno laranja. Os jogadores nem se olhavam, e os olhos da multidão tentavam em vão procurar em campo algo em que se agarrar, para não naufragar antes da hora. O relógio marcou 45 do segundo tempo, os olhos da multidão ficaram rasos d´água, apertados como o coração verde-amarelo. O sonho mais uma vez descia a ladeira, mais uma vez acabava nas quartas, mais uma vez com fiasco
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