quarta-feira, 29 de setembro de 2010


Artigo.

Embalado com laço e fita - presentes, pré-conceitos e enganos.



por Marlon Marques.





















Dentro da crítica de música existe um erro muito recorrente que é o de julgar um disco pela capa. O senso estético das pessoas as faz associar o belo com o bom e o feio com o ruim – sendo essa uma das lições que legamos de Platão. Esse engano acontece – e continua acontecendo, por conta de nosso julgamento sempre a priori, nos deixando levar pelas aparências – a capa. De quantas coisas esse nosso senso estético já não nos privou? Em outros artigos já defendi que a capa é um elemento importante no escopo geral da música. Mas uma coisa não pode se sobrepor a outra – digo, a arte do disco não pode ser superior ao conteúdo musical. Deve haver um complemento. Nesse meu afã de conhecer coisas novas – não coloco barreiras e restrições ao que baixo. Então nessa falta de critérios acabam vindo de tudo, coisas das mais diversas procedências étnicas, folclóricas e nacionais, além de gêneros tão variados como salsa e japonese pop, ritmos tribais da Polinésia, art rock, post rock e dancehall. E essa é a importância de não se limitar. É só dessa forma que conhecemos coisas novas – que descobrimos todo um universo de possibilidades, de coisas que estavam sempre aí e nós em nossa ignorância não sabíamos. Uma dessas coisas foi “Janis Ian”. Para mim uma completa desconhecida, mas a cantora possui uma extensa discografia – que começa em 1967. Há também uma tendência de considerarmos (de maneira geral), aquilo que não é conhecido como ruim. Essa associação é errônea, pois se atribui ao sucesso, qualidade, quando na verdade, basta vermos o que temos na mídia. Se passarmos tudo isso pelo filtro crítico, poucas coisas escapam – mas mesmo assim ainda continuamos a levar teses como essa a sério. Numa pasta com muitos discos desarrumados, ao passo que fui re-nomeando e deixando tudo em ordem – o de Janis Ian foi o que menos me chamou atenção. Me chamou atenção apenas pela capa – onde ela aparece num close tomando a capa toda, com um bonezinho na cabeça, de onde saia seu cabelo semi-crespo preto fosco desbotado. Isso sem contar uma blusa cacharrel de lã – e Janis nos olhando com um olhar lascivo com o dedinho no lábio – totalmente instigante (ou não). Quando eu olhei essa capa me desanimei. Nem se quer pus uma das músicas para rolar e ver do que se tratava. Como aquela pasta ficou lá parada por muito tempo – ela continuou a me olhar. Mas seu olhar aos poucos foi mudando – de uma intenção possível a outra, de algo sexual a um singelo pedido de audição, afinal o que me custava? Foi o que fiz – separei umas três músicas do seu álbum “Between The Lines” de 1975 e fui ouvi-lo. A primeira canção de Ian que eu ouvi foi “Light A Light” – e o resultado foi totalmente arrasador. Eu jamais imaginava que dali sairia algo tão maravilhoso quanto esse disco. Só por três músicas eu já percebi – era um grande disco. Depois dessa experiência pela metade, resolvi experimentar por completo – ouvi o disco todo. Um disco grandiosamente simples e variado, pois passeia pelo pop, pelo folk e pelo jazz em alguns momentos, isso sem contar o requinte dos arranjos – requintado, porém simples. A voz de Janis Ian é macia como uma pluma, e mesmo alguns querendo compará-la com Carole King, já vou logo adiantando, nem se compara. King – embora boa, possui uma voz mais fina e irritante, não tem de longe a maciez e nem a riqueza instrumental de Ian. “When The Party´s Over” abre o disco de uma forma tão calma que até parece canção de ninar. São claros aí ecos de bossa-nova, jazz e pop – senda essas (exceção da primeira), as linhas mestras do disco todo. A segunda música do disco é logo seu grande hit – inclusive ganhando um Grammy com ela, “At Seventeen”. Sob uma base de um violão sincopado e uma cozinha (baixo e bateria) bem cadenciada, Ian canta sua perda da ingenuidade – de forma clara e direta, lembrando até (e não sei se influenciando), “Luka” de Suzanne Vega – pela clareza e franqueza. “Bright Lights And Promises” é um tesouro, linda – e o melhor arranjo do disco. Essa sim é jazz puro, lembra muito Norah Jones e Ella Fitzgerald, piano sofisticado e bateria mínima, num arranjo que cresce na escala da emoção – mas a voz de Ian é impressionante, de uma qualidade que salta os olhos. Ouvir essa música é como abrir um lindo pacote, embrulhado com papel fino e fita de cetim. O repertório de Ian é muito bem estruturado, com o folk das canções “From Me To You” e “Water Colors”, e as cordas brilhantes e cortantes de “In The Winter” – que pelo arranjo, a sensação é de ambientação nebulosa e fria, mas que os metais dão a devida redenção a essa grande canção. O disco todo segue abusando dos climas como em “The Come On” – onde Janis Ian partilha conosco uma solidão, uma tristeza franca, sóbria – que transpassa pela voz límpida da cantora. Um disco plural em todos os sentidos – exceto na capa, que nessa altura do campeonato torna-se um detalhe tão insignificante quanto à limitação sonora do formato mp3. “Tea & Sympathy” é de uma paz quase sacra, algo sepulcral. Seu instrumental lembra passagens cinematográficas, filmes de Bergman com longos silêncios e planos amplos – os violinos lamentam algo quase inacessível a nós, mas com uma verdade que transpassa qualquer barreira idiomática, lingüística, ou de qualquer outra natureza, pois atinge direto o coração bruto. Esse disco serve não para ensinar-nos uma lição, mas para reforçá-la – pois a cada dia erramos na mesma coisa e não aprendemos. A capa é importante, sim – mas a música nesse contexto, e num contexto de confronto, é mais importante. Um disco primoroso escondido por uma capa ruim – uma obra de bom gosto por detrás de outra de gosto duvidoso. Uma cantora espetacular oculta – que ninguém fala, que não aparece, e nem por isso menos talentosa e brilhante. “Between The Lines” é um desses discos para ficar no tocador de mp3 ou no rádio do carro por muito tempo, pela leveza, pela paz que traz e pelo bom gosto da cantora e da banda. E eu que quase não a conheci pelo julgo da capa – por isso fica a dica, ouça de tudo e nunca julgue um disco pela capa, por pior que ela seja.







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Janis Ian - Between The Lines. (Sony, 1975).

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