domingo, 9 de novembro de 2008

Chico Buarque - Almanaque.



Almanaque.

O álbum de 1981 é um verdadeiro almanaque de ótimas canções, embora tenha apenas 9 músicas, é o suficiente para o ouvinte não pular nenhuma faixa. Com o general João Batista Figueiredo no poder, começa-se o período de abrandamento do regime militar, anístia e retorno dos exilados, a censura um pouco mais amena, as liberdades individuais se corporificando progressivamente, ou seja, a situação está menos “preta”, como Chico diz em “Meu caro amigo”. O tom é menos político e combativo, aqui Chico explora mais o seu genero cronista do cotidiano, emplacando pelo menos quatro clássicos absolutos da música popular brasileira.

“As vitrines”, é a canção que abre o disco, ritmo lento, compasso de noite escura, é como uma caminhada solitária sem destino. “Ela é dançarina” é um samba refinado com piano, com ótimas rimas no melhor estilo Chico Buarque: “Eu sou funcionário. Ela dançarina. Abro o meu armário. Salta a serpentina. Nas questões de casal não se fala mal da rotina[…]”. É uma pequena história de desencontros, horários e rotinas diferentes, entre um burocrata (funcionário) e uma artista (dançarina). “O meu guri” é autobiográfica, fala sobre uma questão hoje não tão em voga, o futuro profissional dos filhos. Chico Buarque todos sabem é filho do historiador e intelectual Sérgio Buarque de Holanda, e por isso tinha uma grande responsabilidade dada a importancia de seu pai, por isso que com a carreira de artista e não de intelectual acadêmico consolidada ele menciona “desde o começo eu não disse seu moço, ele disse que chegava lá[.]”. “A voz do dono e o dono da voz”, é um blues rock. Não é muito o estilo que Chico costuma fazer, mas talvez seja reflexo dos anos 80, antecipando o boom do rock nacional. A letra é sensacional, é sobre os direitos do homem e da mulher numa relação, o homem (o dono) e a mulher (a voz), o dono da voz “andava com outras doses” e “a voz era de um dono só”, ou seja, o homem trai naturalmente, mas a mulher deve ser fiél. Porém a voz se cansou dessa situação, “ficou cansada após cem anos fazendo a santa. Sonhou se desatar de tantos nós. Nas cordas de outra garganta”.

“Chegou a sonhar amantes”, e “enfim, a voz firmou contrato e foi morar com novo algoz”, o dono da voz não gostou obviamente, pois somente ele tinha o direito a ter outras vozes, foi chamada infiél por trocar de traquéia. “Almanaque” a canção título é bem balançada, é uma bossa rápida, com uma letra sobre indagações filosóficas, “Se mamava de sabe lá que teta o primeiro bezerro que berrou[.]”, “Quem pintou a bandeira brasileira que tinha tanto lápis de cor[.]”, e a melhor, “Diz quem foi que inventou o alfabeto e ensinou o alfabeto ao professor[.]”, pra no final indagar-nos sobre uma questão que um dia todos nós já nos perguntamos após o final de um relacionamento: “Pra onde vai o meu amor, quando o amor acaba”. “Tanto amar” é uma canção quase violeira, fala sobre a quantificação do amor em rimas belas e simples. “É na soma do seu olhar que eu vou me conhecer inteiro”, é uma linda declaração no momento certo, e toda poesia de “Suas pernas vão me enroscar num balé esquisito. Seus dois olhos vão se encontrar no infinito”.

“Angélica” é uma mãe que já não tem mais a presença de um filho, mas que gostaria de fazer por ele tudo o que uma mãe faz por um filho. A música pergunta quem é essa mulher, de extrema benevolência e tristeza, que só queria embalar, lembrar, agasalhar e cantar para o seu menino, uma vez “que ele já não pode mais cantar”. “Moto-contínuo”, outra bossa sensível, lindo poema de Chico musicado por Edu Lobo, fala sobre o que um homem pode fazer por uma mulher quando essa vale a pena, diz que “um homem pode ir ao fundo[…]e inventar qualquer mundo se for por você”.

“Amor barato” finaliza o álbum com um samba bem servido, grandioso e grandiloquente, que começa com Chico cantando e finaliza com Carlinhos Vergueiro e coral. A letra fala sobre um relacionamento que embora não seja um primor deve ser valorizado e cuidado como flor, mesmo que seja um tipo de flor qualquer, que nasce em qualquer lugar, tipo maria-sem-vergonha. É um amor que mendiga cafuné e faz pechincha, é um amor barato, que come e cospe no prato, que não valoriza, mas que sonha e tem seu valor.

Enfim é um álbum que deve ser saboreado pela variedade dos temas e dos estilos que Chico Buarque passeia, são letras brilhantes e sacadas geniais do grande compositor popular e tradutor da vida cotidiana.

Marlon Marques.


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